11.12.16

Verborragia dos palavrões nas páginas da literatura: empobrecendo a arte dos contadores de história

Entro agora numa de me comparar (olha a audácia!) com o grande Ariano Suassuna, pai dos pitorescos Chicó (Selton Mello)  e João Grilo (Matheus Nachtergale), do clássico O Auto da Compadecida, e ainda Osman Lins, criador da encantadora Lisbela (Débora Falabella) e do vigarista cheio de charme de nome Leleu (Selton Mello, novamente), do romance Lisbela e o Prisioneiro. (*Asterico, para avisar sobre a notinha lá em baixo!).

Como o escritor Ariano Suassuna, cabra macho que nasceu lá na Paraíba e já foi para a colônia das estrelas, eu também não aprecio em nada a verborragia dos palavrões nas páginas da literatura, tampouco, nas páginas da vida, a bem da verdade!

Ariano dizia: "eu não gosto de palavrão, acho vulgar e mesmo sem graça! Só gosto de ouvir uma obscenidade quando ela é dita de maneira inteligente, dessa maneira que Freud disse: quando ela é dita, colocando-se a obscenidade por baixo de palavras de aparência inocente”.

A bom contador, boa contadora de história, a dica basta!

Contudo, sigo com Suassuna. A literatura, mesmo em tempos de liberdades e democracias (questionáveis) segue sendo uma das artes; é a arte de contar histórias! Um livro não é um sorvete que só se consume, sim ou no, no presente momento.  Um livro é um registro histórico, vai guardar para as próximas gerações as palavras e as ideias de um autor, através de seus personagens.

Para mim, colocar um quilo de palavrões na boca de um personagem é deixá-lo muito humano, e, sinceramente, que me desculpem os que andam por aí orientando que a literatura tem que trazer “gente de verdade” em suas páginas! Realidade nua e crua é para o jornalismo, e atente que existe quem proteste!

Literatura é permitir-se sair da realidade, “viajar” nas ideais, com interessantes tramas, personagens e causos ficcionais,
prosopopéicos!  Se possível for, abrir uma página de um livro e entrar direto para o mundo de pura irrealidade.

Para ver e saber de gente de verdade e suas malignidades excessivamente humanas, temos o (des) serviço dos meios de comunicação de massa. Não é preciso submeter a literatura a esse rebaixamento!

Daí, que humanizar muito isso a coisa literária, principalmente nos diálogos (recheando-os de palavrões e obscenidades, como diz Ariano Suassuna) é retirar da literatura sua mais linda função, a de levar o leitor a uma outra realidade que não a sua atual.

Vamos! Não caia na tolice de pensar que o contador de história que não escreva palavrões seja um chato de plantão. Quem já leu ou assistiu Lisbela e o Prisioneiro sabe do que estou falando. Cada personagem do romance desenvolve diálogos extremamente gostosos de ler e relembrar, sem cuspir uma só obscenidade! Mesmo o Severino de Aracaju (Marco Nanini), o temido cangaceiro que persegue Chicó e Zé Grilo (Auto da Compadecida) e o delegado bruto e ignorantão, Tenente Guedes (André Mattos), pai da mocinha, em Lisbela e o Prisioneiro. 

Como, então, xingar sem dizer palavrão...

Respeitados os insights de cada momento literário de cada um, Ariano Suassuna ensina, para bom apreendedor, como deixar um personagem expressar sua raiva, medo, desgosto, revolta, angústias etc de modo enfatizado, sem, porém, pronunciar um só palavrão! Um mestre! (veja o vídeo):

“Tem uma história do povo que diz que lá no Recife, vinha um frade capuchinho. ele tomou um taxi e sentou ao lado do motorista. e o motorista era um desses motoristas loucos.
Naquele trânsito doído, encheu o pé e começou a fazer loucura (no trânsito). Aí, o frade arrastou o rosário e começou a rezar, com medo. Aí, de repente, o motorista foi ultrapassar um carro, vinha um ônibus e para não bater no ônibus, ele virou assim e bateu num pé de figo Benjamim.
Pá! Quebrou a vidraça, o frade bateu a cabeça, cortou-se no vidro, puxou o lenço e colocou (na testa) para segurar o sangue e falou para o motorista:
— Ô, meu filho, seu pai e sua mãe ainda são vivos?
— São.
— Você quer me apresentar os dois para eu fazer o casamento deles?
Entenderam? Ele chamou o homem pelo palavrão que ele estava querendo chamar, mas não pronunciou o nome.”

Um toque de mestre de um the best das sutilezas, não é mesmo?


* Ariano Suassuna, 6 de junho de 1927 - 23 de julho de 2014, dramaturgo, romancista, ensaísta e poeta brasileiro, autor também de O Auto da Compadecida.